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As espirais negativas do Brexit

Em última análise, o Brexit poderia vir a assemelhar-se ao desmembramento de um corpo, com a cabeça financeira britânica separada da economia real europeia.

Os mercados financeiros estão a dar um sinal de desaprovação ao Brexit, e estão certos em fazê-lo. Mas dado que é o universo financeiro, e não a sociedade civil democrática, que está a rejeitar a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, o debate em torno do Brexit vai tornar-se mais amargo, e as consequências mais graves.

 

Os efeitos económicos iniciais do referendo de Junho foram insignificantes, podendo mesmo ter sido ligeiramente positivos, agora que os números sobre o crescimento do Reino Unido no pós-referendo estão a ser revistos em alta. Mas a libra britânica está a afundar, os custos de financiamento do Reino Unido estão a aumentar, e o processo de saída da UE pode revelar-se altamente destrutivo.

 

Tendo decidido abandonar a UE, é do interesse do Reino Unido gerir a saída de forma a minimizar os custos do ajustamento a curto prazo e os efeitos negativos a longo prazo. Da mesma forma, é do interesse da UE atenuar não só o impacto económico, mas também os danos à reputação que decorrem da perda de um grande Estado-Membro.

 

Idealmente, os participantes num conflito pensam de forma fria e racional sobre os seus interesses de longo prazo, e agem em conformidade; infelizmente, isso quase nunca acontece. Assim como o divórcio de um casal costuma levar à amargura e batalhas que beneficiam apenas os advogados, o divórcio do Reino Unido da UE levará certamente a um clima de azedume. À medida que a hostilidade aumenta, um acordo amigável tornar-se-á menos provável, e toda a gente vai acabar por perder mais do que ganhou.

 

Existem três espirais negativas no processo de divórcio do Reino Unido e UE. Em primeiro lugar, existem riscos políticos e estruturais para a UE se mais Estados-membros decidirem sair. Quando o bloco perde um Estado-membro, parece um infortúnio que pode ser atribuído às peculiaridades domésticas do país que decidiu abandonar. Mas se o bloco perder mais Estados-membros, começa a parecer negligência, má gestão ou uma falha significativa no projecto. Assim, a UE tem um forte incentivo para tornar o Brexit tão doloroso quanto possível para o Reino Unido, a fim de desencorajar países como a Holanda, Suécia ou Finlândia a seguirem o exemplo britânico.

 

As sondagens mostram que o apoio à UE tem crescido em muitos Estados-membros desde o referendo do Reino Unido. Mas isto não é porque a UE passou a funcionar melhor de repente. A verdade é que muitos europeus partilham da opinião que o antigo primeiro-ministro britânico, David Cameron, errou ao realizar o referendo sobre a permanência na UE.

 

Imediatamente após o referendo, a chanceler alemã Angela Merkel suplicou aos europeus que não fossem "maldosos" (garstig) ao pensar nos termos da UE para o divórcio do Reino Unido. Mas, como o Reino Unido sabe que a UE teme a desintegração, verá inevitavelmente vingança em qualquer posição que a UE tome. Os negociadores britânicos terão de assumir que os seus homólogos da UE estão a tentar tornar a saída tão rochosa quanto possível, em termos económicos e políticos.  

Os negociadores britânicos responderão à lógica dos negociadores da UE tentando tornar o processo tão doloroso quanto possível para o resto do bloco. Na verdade, os defensores da saída da UE já acreditam firmemente que o Reino Unido está melhor sozinho, e que o Brexit vai penalizar muito mais os europeus do que os britânicos. Isso significa que os defensores da saída têm um poderoso incentivo para cumprir sua própria profecia.

 

A segunda espiral está relacionada com a economia política doméstica do Reino Unido. O país não pode simplesmente começar a bater os europeus no seu próprio jogo, reanimando a sua indústria automóvel ou fazendo o seu próprio vinho para rivalizar com os produtores franceses e italianos. O princípio da vantagem comparativa exige que o Reino Unido enfatize as suas indústrias de serviços, e especialmente os serviços financeiros.

 

A city londrina já conduz a economia britânica, e um cenário pós-Brexit implica o crescimento de Londres enquanto centro financeiro global. Para que isso acontecesse, o governo britânico teria que estabelecer um regime de impostos baixos, regulação leve e tratamento favorável para com os imigrantes qualificados e não qualificados que trabalham nos serviços financeiros e em torno deles. Mas cada parte deste plano entra em conflito com o objectivo do governo de controlar o sector financeiro e limitar os fluxos de migrantes.

 

Na verdade, fortalecer o grande capitalismo é exactamente o oposto do que a primeira-ministra britânica Theresa May prometeu fazer quando sucedeu a Cameron. A facção "Leave" é dominada por pessoas de Inglaterra e do País de Gales que se sentem excluídas dos ganhos da globalização e votaram contra os privilégios e riquezas da brilhante megacidade global de Londres. Assim, uma das estratégias de negociação mais eficazes do Reino Unido dividiria profundamente a própria Grã-Bretanha, e especialmente o Partido Conservador.

 

Isso aponta para a terceira espiral negativa: a migração, que pesou tão fortemente no resultado do referendo sobre o Brexit. O Governo de May deve agora demonstrar aos eleitores que está a fazer alguma coisa em relação aos migrantes e trabalhadores estrangeiros no Reino Unido. Mas enquanto a Grã-Bretanha tiver uma economia dinâmica, atrairá imigrantes, independentemente de serem ou não admitidos formalmente. O governo só pode garantir menos imigração destruindo a economia, o que seria posteriormente atribuído à crueldade europeia.

 

Ao mesmo tempo, se o Reino Unido se tornar um centro financeiro offshore de baixo custo que elimina empregos, poderia representar um perigo para os seus vizinhos. A Europa Continental pode ser tentada a rejeitar completamente o capitalismo financeiro, em favor de uma estratégia de crescimento baseada em grandes projectos de investimento impulsionados pelo Estado.

 

Em última análise, o Brexit poderia vir a assemelhar-se ao desmembramento de um corpo, com a cabeça financeira britânica separada da economia real europeia. A Grã-Bretanha pareceria menos atractiva, a Europa fechar-se-ia sobre si mesma, e cada lado culparia o outro. Isso seria um mau resultado para todos. Mas é congruente com a lógica amarga do divórcio - e é por isso que a maioria dos casais opta por aconselhamento.

 

Harold James é professor de História e Relações Internacionais na Universidade de Princeton e membro sénior no Center for International Governance Innovation.

Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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