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Mario Margiocco 02 de Dezembro de 2016 às 20:00

O que está em causa no referendo italiano

Se Renzi for derrotado, a Liga do Norte e o Movimento Cinco Estrelas podem juntar forças para apoiar um novo Governo e este pode realizar um novo referendo – e desta vez sobre o euro. Se a Itália decidir seguir o seu caminho sozinha, todo o projecto europeu pode sofrer um golpe mortal.

Nos últimos 68 anos, a Itália teve 17 eleições gerais e alguns referendos. Apenas em três ocasiões a ida dos italianos às urnas captou tanta atenção internacional: em 1948, quando a escolha era entre o Ocidente e o comunismo; em 1976, quando os eleitores enfrentaram uma votação semelhante, mas entre os Democratas Cristãos e o "Eurocomunismo" de Enrico Berlinguer; e agora, com o referendo sobre reformas constitucionais.

 

As implicações da próxima votação são enormes. O primeiro-ministro, Matteo Renzi, apostou o seu futuro político nesta votação, anunciando mesmo que se demitirá (ainda que não de imediato) se as reformas forem rejeitadas. Tal desfecho iria enfraquecer irremediavelmente o Governo de coligação de centro esquerda - o Partido Democrata (PD) de Renzi já está agitado por lutas internas por causa das reformas. De facto, o PD pode não ser capaz de evitar uma divisão mesmo que a votação vá no sentido pretendido pelo primeiro-ministro.

 

Uma derrota de Renzi vai ser interpretada como uma vitória dos dois maiores partidos populistas italianos: a Liga do Norte e o grande Movimento Cinco Estrelas, liderado pelo comediante Beppe Grillo. Os dois partidos não são aliados, mas ambos nutrem um sentimento anti-sistema e são favoráveis a "soluções nacionais" para os problemas italianos – a começar pelo regresso à lira italiana.

 

Se Renzi for derrotado, a Liga do Norte e o Movimento Cinco Estrelas podem juntar forças para apoiar um novo Governo e este pode realizar um novo referendo – e desta vez sobre o euro. Se a Itália – um dos países com a maior dívida pública – decidir seguir o seu caminho sozinha, todo o projecto europeu pode sofrer um golpe mortal. Na era de Donald Trump e do Brexit, este desfecho está longe de ser impensável.

 

A questão em jogo neste referendo não está livre de consequências, mas não deve decidir o destino da Europa. Os italianos vão decidir se retiram ao Senado (a Câmara Alta do Parlamento) dois terços dos seus membros e muita da sua autoridade legislativa, transformando-a num mero fórum de deliberação semelhante ao germânico Bundesrat. Além disso, os italianos vão decidir sobre o regresso de alguns poderes regionais ao Governo central.

 

Mudanças como estas foram discutidas durante 30 anos. A falta de movimento pode beneficiar Renzi, caso os eleitores concluam que não devem desperdiçar uma oportunidade rara de fazer algo para reformar o seu sistema esclerótico. O presidente Sergio Mattarella é imparcial mas preferiria que as reformas avançassem. O seu antecessor, Giorgio Napolitano, está também a favor das reformas que, segundo disse, seriam "óptimas notícias para a Itália".

 

Mas as reformas também têm sido alvo de uma oposição feroz. Algumas instituições estatais não gostam da ideia de dar mais poderes aos ramos Executivos. Os magistrados, por exemplo, temem a perda dos extensos e ilimitados poderes. Depois há os novos populistas, vários veteranos do PD, e várias outras figuras de elite, incluindo vários antigos membros do Tribunal Constitucional, que geralmente receiam mudanças. O antigo primeiro-ministro Silvio Berlusconi, sempre oportunista, está também a fazer oposição às reformas.

 

A oposição, como habitual, beneficia consideravelmente dessa simples mensagem. Votar "não" é votar contra o "sistema" e toda a sua corrupção. Quem é que não é contra a corrupção? Somando a isto o crescimento do eurocepticismo, o resultado é uma combinação política tóxica. As sondagens indicam agora uma maioria para o "não" da ordem dos 5-6 pontos mas há 20% dos eleitores que continuam indecisos.

 

Se a seguir ao referendo existir uma eleição geral, Grillo vai estar a disputar as eleições taco a taco com o PD de Renzi. Dado que a nova lei eleitoral italiana dá um grande prémio ao vencedor (Renzi estava seguro que seria quem seria beneficiado), essa perspectiva é verdadeiramente assustadora.

 

Grillo – em grande parte como Matteo Salvini da Liga do Norte – tem pouca experiência política, poucos conhecimentos da história europeia, poucos argumentos, e não tem uma visão credível para o futuro. Grillo culpa a Europa tanto pelos erros italianos, como pelo elevado montante de dívida pública, que representa 132% do PIB. E faz promessas impossíveis de cumprir, como garantir rendimentos para todos os cidadãos que não têm outros meios.

 

Juan Perón, um populista consumado, provou como tais benesses podem ser erradas quando tomou medidas semelhantes na Argentina. E esse não é o único erro argentino que Grillo pode cometer. Ele também apoia o modelo argentino de lidar com a dívida, entrando em incumprimento. É uma proposta absurda – Itália nunca entrou em incumprimento, embora o tenha feito com Mussolini, quando este tentou ir "pelo seu próprio caminho", o que teve resultados desastrosos – que leva uma pessoa a pensar se Grillo é capaz de fazer a distinção entre a política e a comédia.

 

Tal como no Reino Unido e nos Estados Unidos, mudança é a palavra mágica em Itália hoje. Ninguém quer ser contra a mudança. Em vez disso, a oposição às reformas é apresentada como o apoio a reformas melhores. Não mudem apenas a constituição, implora a campanha pelo "não" aos eleitores: mudem tudo! Como no romance Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, mudar tudo pode ser apenas uma maneira de manter tudo na mesma. E isso é a última coisa que Itália precisa. 

 

Mario Margiocco é autor do mais recente livro "Il disastro americano. Riuscirà Obama a cambiare Wall Street e Washington?" (The American Disaster: Will Obama Change Wall Street and Washington?).

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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