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Anatole Kaletsky 02 de Janeiro de 2018 às 14:00

Ou há um falso Brexit ou não há Brexit

Ainda é possível abandonar o Brexit, revogando a notificação de retirada nos termos do artigo 50.º do Tratado da União Europeia. Esta decisão teria de ser tomada pelo parlamento antes do prazo limite de 29 de Março de 2019 e teria provavelmente de ser ratificada através de outro referendo.

Desde o referendo sobre o Brexit, no ano passado, o Reino Unido tem sido comparado a um suicida que salta de um edifício de 100 andares e que, quando passa pelo 50.º andar, grita: ‘até aqui, tudo bem". Esta comparação é injusta para os suicidas. A verdadeira mensagem económica e política de hoje é: "até aqui, tudo mal".

 

O "acordo" para o início das negociações com vista a uma relação pós-Brexit, anunciado no passado dia 15 de Dezembro na cimeira da União Europeia, seguiu-se à capitulação da primeira-ministra Theresa May relativamente a todas as exigências feitas pelos líderes europeus: 50 mil milhões de euros de contribuições orçamentais, a jurisdição dos tribunais europeus sobre os direitos dos cidadãos da UE no Reino Unido, e a ausência de fronteira física entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte.

 

A última cedência foi decisiva. A fronteira aberta na Irlanda obrigou May a abandonar a sua promessa de "recuperar o controlo" face à UE e ao seu quadro regulatório, tal como se confirmou no comunicado da cimeira: "na ausência de soluções acordadas, o Reino Unido assegura que não haverá divergência a respeito das regras do mercado interno e da união aduaneira que, agora ou no futuro, sustentam a cooperação entre o Norte e o Sul".

 

O resultado desta concessão crucial no que respeita à Irlanda é que os dois cenários habitualmente propostos para as relações do Reino Unido com a União Europeia podem agora ser descartados. Na ausência de maioria parlamentar para revogar o acordo, já não é possível haver um "Brexit duro", através do qual o Reino Unido se libertaria dos regulamentos da UE – passando as suas trocas comerciais a ser feitas apenas com base nas regras da Organização Mundial do Comércio. E um "Brexit suave", que tentava preservar as vantagens comerciais de fazer parte da UE sem as obrigações políticas, também já não é possível, visto que os líderes europeus rejeitam uma tal "selecção" – e continuam a ter pulso forte sobre o Reino Unido.

 

Se o Brexit duro e o Brexit suave forem excluídos, que opções existem? A escolha óbvia e aparente, depois do fracasso da aposta eleitoral de May, consiste nalguma forma de adesão à UE como membro associado, similar à da Noruega. O Reino Unido manteria muitos dos seus actuais privilégios comerciais, em troca de se harmonizar com as regras e regulamentos da UE, incluindo a livre circulação dos trabalhadores, contribuição para o orçamento da União Europeia e aceitação da jurisdição da legislação europeia. Apesar de May ter, insensatamente, rejeitado no início de 2017 estas três condições, o resultado mais provável das negociações do Brexit é que a primeira-ministra tenha de abdicar de todas as suas "linhas vermelhas".

 

Se bem que as empresas, investidores e economistas possam aplaudir um "Brexit falso", ao estilo norueguês, isso teria um enorme custo político. O Reino Unido teria de cumprir a legislação, regulamentos e sentenças dos tribunais da UE, sobre os quais deixaria de ter qualquer palavra a dizer. Em vez de ser um legislador, o Reino Unido passaria a ser um receptor de regras – ou, na emotiva linguagem adoptada recentemente pelos defensores da linha dura do Brexit, o Reino Unido passaria de potência imperial a um "Estado vassalo" ou uma "colónia" da União Europeia.

 

Este estatuto de receptor de regras é aquilo que o Reino Unido já pediu para um "período de transição" de dois anos, a começar em Abril de 2019. Theresa May diz que este será um acordo "estritamente limitado no tempo", enquanto negoceia um acordo de comércio livre (ACL) com a UE. Mas a União Europeia já sublinhou inúmeras vezes que dois anos é um período de tempo demasiado curto para negociar até mesmo um simples ACL, quanto mais o acordo "imaginativo e à medida" pretendido por May.

 

Na realidade, não há praticamente possibilidade de o Reino Unido vir alguma vez a negociar a "parceria profunda e especial" que May prometeu. É simplesmente inconcebível que os líderes europeus ofereçam às indústrias dos serviços britânicas acesso ao mercado único da UE sem imporem as condições jurídicas e orçamentais aceites pela Noruega e pela Suíça.

 

O que acontecerá, então, no final do período de transição, em Abril de 2021? A única resposta plausível é uma nova transição, nem que seja para evitar uma ruptura economicamente devastadora nos regulamentos comerciais antes das eleições gerais britânicas de 2022. E supondo que o período de transição é alargado de 2021 a, digamos, 2023, será que não serão possíveis novas extensões desse período, evoluindo muito provavelmente para um acordo quase-permanente? As relações da Noruega com a União Europeia, através do Espaço Económico Europeu, também delineadas como uma breve transição, já duram há 24 anos.

 

Este cenário à "Hotel California", em que "se pode fazer o ‘check out’ sempre que se queira, mas nunca se pode realmente sair", acabará por enfurecer tanto os defensores da saída da UE como os defensores da permanência do país no bloco europeu. Então quais são as restantes opções?

 

Se um Brexit duro é economicamente inaceitável para as empresas e para o parlamento britânico, um Brexit suave é politicamente inaceitável para os líderes da União Europeia, e um falso Brexit é inaceitável para praticamente toda a gente, isso faz com que reste apenas uma alternativa: não haver Brexit.

 

Ainda é possível abandonar o Brexit, revogando a notificação de retirada nos termos do artigo 50.º do Tratado da União Europeia. Esta decisão teria de ser tomada pelo parlamento antes do prazo limite de 29 de Março de 2019 e teria provavelmente de ser ratificada através de outro referendo.

 

Uma condição necessária para esta sequência de eventos seria o desmoronar do governo de Theresa May, talvez provocado por uma revolta dos defensores do Brexit contra as condições do "Estado vassalo" impostas pela UE durante o período de transição. Nestas circunstâncias, umas eleições gerais resultariam quase certamente numa coligação liderada pelo Partido Trabalhista baseada na promessa de se "repensar" o Brexit. Este foi precisamente o cenário sugerido em Novembro passado por um dos poucos leais a May que ainda restam, o ministro da Saúde, Jeremy Hunt, que se tornou o primeiro conservador a admitir publicamente que o Brexit poderá nunca acontecer se os zelosos eurocépticos se rebelarem contra May.

 

De momento, a ameaça de um governo trabalhista tem sido suficiente para intimidar os defensores da linha dura do Brexit. Mas a quietude forçada dos eurocépticos torna quase certo que May irá negociar uma transição "Estado vassalo" que evoluirá para o pesadelo dos eurocépticos de um "Hotel California" incontornável, com base no modelo norueguês.

 

Os adeptos de um Brexit duro vão-se valendo deste dilema lógico e poderão muito bem decidir derrubar May e arriscarem umas eleições gerais em vez de colaborarem com a despromoção do Reino Unido a "estatuto de Estado vassalo". O suicida que saltou do prédio continua a cair e enquanto não passar pela janela do 1.º andar não saberemos se está ou não preso a uma corda elástica.

 

Anatole Kaletsky é economista-chefe e co-chairman da Gavekal Dragonomics e autor do livro intitulado Capitalism 4.0, The Birth of a New Economy.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org

Tradução: Carla Pedro

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