Opinião

Este mundo acaba aqui

Este mundo acaba aqui

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

O mundo que começou no fim da Guerra Fria acabou. A Europa está preocupada com a Rússia, não conta inteiramente com a defesa americana e perdeu o entusiasmo pelas vantagens do comércio livre

Há duas semanas, a Comissão Europeia anunciou o fim do mundo em que temos vivido desde 1989, e mesmo antes. Quando Ursula Von der Leyen e Josep Borrell anunciaram a primeira estratégia industrial de defesa, anunciaram, também, o fim de duas eras. A da protecção americana e a da paz pelo comércio. Falta saber que tempo é este.

A política industrial de defesa europeia, apresentada dia 5 de Março, por enquanto é pouco mais que papel. Os 1,5 mil milhões anunciados, a haver, dariam para comprar pouco armamento ou munições. Mas politicamente é muito mais que isso.

Até 1989, a Europa vivia a ameaça soviética protegida pela segurança americana. A ameaça era real, como os países que estavam para lá da Cortina de Ferro, incluindo metade da Alemanha, sabiam. A protecção americana, também.

Nesse mundo dividido em dois, a Europa anunciava uma ambição de integração política, mas concretizava, sobretudo, uma realidade de integração económica. A defesa era um problema americano, primeiro, e de ninguém, depois.

A seguir a 1989, a integração económica transformou-se em mercado único, no interior da União Europeia, e em globalização com o resto do mundo. Internamente, não haveria barreiras ao comércio e à circulação de pessoas, bens, serviços e capitais (uma coisa ainda por concluir). Externamente, exportaríamos aquilo em que fôssemos fortes, e importaríamos aquilo que fosse mais barato feito lá longe.

Nesse mundo, a segurança e defesa era um tema secundário. Havia referências e políticas de segurança e defesa e, em 1999, o primeiro Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum. Mas, na verdade, a Europa acreditava em duas coisas. Acreditava que a expansão global do comércio internacional, integrando as grandes economias, tornava os conflitos entre potências bastante improváveis. E acreditava que, enquanto a força americana mantinha alguma ordem no Mundo, a força moral europeia mantinha o mundo próximo da Europa e inspirado pelos seus valores. Enquanto a América era hardpower, a Europa era softpower. Os americanos eram de Marte, os europeus eram de Vénus.

Toda esta visão do mundo foi brutalmente interrompida a 24 de Fevereiro de 2022, com a invasão russa da Ucrânia. Durante anos, falar de indústria de defesa europeia era quase sacrilégio. O principal instrumento bancário europeu de financiamento da economia privada, o Banco Europeu de Investimento, estava impedido de a apoiar. No dia 5 de Março, tudo isso foi revisto.

O objectivo da Estratégia Industrial de Defesa é que, até 2030, que é já ali, 40% das compras das Forças Armadas dos países da União Europeia passem a ser feitas em conjunto. Querem também que, até à mesma data, 35% do comércio europeu relacionado com a defesa seja comércio interno, feito dentro da UE. E querem que até 2035 os Estados da União europeia comprem na Europa 60% do que investem em defesa. Ninguém está a falar de criar um exército europeu. A ideia é, ao mesmo tempo, securitária e industrial.

Os europeus, que mal falavam de defesa e segurança, querem desenvolver uma indústria europeia de defesa e segurança, alimentada pela despesa europeia em defesa e segurança, que terá de crescer. E não é apenas a pensar em munições e armamento para a Ucrânia. É muito mais que isso.

A Comissão e o Conselho, porque além de Von der Leyen estava Josep Borrell, querem incentivar os Estados membros a desenvolver uma indústria europeia de defesa por três razões: porque deixaram de se sentir em segurança, depois da invasão russa da Ucrânia, porque não acreditam que a Europa possa ou deva depender dos Estados Unidos para garantir a sua segurança, e porque querem usar o investimento na defesa para animar a economia europeia. De resto, também fora da segurança e defesa, a ideia é animar e proteger a economia e indústria europeias apertando as portas ao comércio com quem produz mais barato porque tem de cumprir menos regras do que os europeus, sejam ambientais, para já, ou sociais, mais tarde.

Uma Europa com fundado medo da Rússia, que desconfia da América, que quer desenvolver uma indústria de segurança e defesa, e que se protege da competição do comércio internacional é uma Europa completamente diferente daquela a que aderimos ou daquela em que temos vivido. Mesmo que ainda não seja evidente que Europa vai ser esta, temos de discuti-la, percebê-la e, importante, influenciá-la. Mas para isso temos, primeiro, de saber se temos algumas ideias sobre como é que Portugal se posiciona aqui. E daqui para a frente. Essa conversa não está a ser tida.

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